Quando um mártir morre, chega do
outro lado ainda em chamas. Independentemente de como morreu seu corpo brilha forte
em tons de laranja e azul e um fogo emana dos seus pés o encobrindo por
completo. Como se fosse uma grande fogueira, as labaredas que fluem pela coluna
tomam o céu e um barulho de fogo consumindo madeira ecoa pelos ares. O grito do
mártir se intensifica quando chega do outro lado, sendo que é impossível
definir os sentimentos que o mártir cria através dos mesmos, ora dor, ora paz,
ora sentimento de dever cumprido, ora intensa devoção definindo seus lábios.
Quando um mártir está em processo
de morte toda apreensão se vai. Olhe você mesmo nos olhos de um mártir,
comprove-me algum traço de pavor, de medo. É impossível porque é no processo de
morte que o mártir se encontra por completo, abraça a dor, beija o seu objetivo
e se sente atravessado pela meta cumprida. Inocentes não devem ser mortos, mártires
precisam ser mortos para que o arquétipo tenha sentido e o arquétipo traça a
história genética e os caminhos carnais por inteiro, desde o nascimento até o
reencontro.
O mártir tem vários nomes, ora
gênio, doente, lobo da estepe ou até ave do mal, todos eles são resultado da
ação incessante do mártir entender a si mesmo, num processo doloroso de auto-aceitação
da própria dor, envolta do sentimento de não pertencimento. O que são os
mártires se não grandes olhos, forjados geneticamente por algo ou acaso no
passado, para que a explosão de vida seja entendida? Os mártires não são
heróis, são os heróis que precisam do título para sobreviver.
Sobrevivem de migalhas de
atenção, de gratidão pura, de sorrisos não necessariamente provocados por eles,
da sensação de ser útil a algo. Qual o propósito do mártir? Qual o propósito? O
que um mártir não daria por ser um arquétipo comum? O que não daria o mártir
por somente ser lobo, ou mesmo por ser somente homem? Diga-me o que as Aves do
Mal conversam todos os dias pela madrugada? Como sairemos disso, como nos
sararemos, como viveremos? Quando as Aves do Mal conversam existe um sentimento
espelhado, como se todas elas se conectassem e estivessem num monólogo que se repete infinitamente, enquanto dura.
Mártires estão sozinhos, mártires nunca encontrarão mais que um abrigo
temporário e lá fora o vazio que reside dentro grita para que os mesmos
abandonem a ignorância forçada, a força que se impunha de forma ignorante
contra o mar de incertezas na certeza da morte na fogueira. Na fogueira o
mártir se encontra, na fogueira o mártir pertence à algo.
Deixa o lobo tomar conta por
instantes, deixa o homem sentir vergonha pela sua natureza dividida, maligna.
Deixa o rapaz lamuriar seu nascimento, deixa que ele entenda que ele realmente
nasceu quebrado, mas que não é sua culpa não conseguir se adaptar, por mais que
ele tente, por mais que ele se esforce. Ele vai perceber que só ele e os outros
eles, os de fora e os de dentro tem o prazer de sentir a música como um corte
profundo, o aperto na garganta de tomar as dores de terceiros como suas
próprias genuinamente. Feliz é aquele mártir que não possui alguém que chore
por ele então...
Porque o mártir é suicida, sim, o mártir é suicida. O mártir sabe o que ele é, de forma veemente se vê preso num estado niilista, implosivo, maldito por vezes. Covarde acima dos outros é o mártir que morre velho, guerreiro é o mártir que tira de si todo o poder de decidir sobre o futuro dos que o amam e assim se entrega às chamas. Lá nas chamas está o pertencimento, é lá que o mártir se encontra, sim, sempre será somente lá. Toda tentativa de viver é em vão para o mártir, e ele é mártir por continuar a viver aonde não comunga com nada, nem com a terra sobre seus pés. Mártir da causa dos perdidos, mártir de si mesmo e covarde para o mundo, parece bem justo.
Deixa eu voltar a minha
ignorância forçada, pelos meus de sangue, afinal, não é por eles que não me
entrego ao meu amor funesto? E o que virá depois é incerto pois falho ou não o
mártir encontrará seu caminho para as chamas e o depois será o vácuo, se os
sonhos do mártir se cumprirem pelo menos uma vez.
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